Cabelo cacheado e autoestima
No começo deste ano fiz um corte radical no meu cabelo. Não que isso tenha muito peso pra mim, porque não tenho esse tipo de apego, e também não foi um “big chop”, no sentido de que não houve transição para o cabelo natural. Quem convive comigo sabe que a minha luta pelo meu cabelo natural é muito antiga e não tenho um histórico longo de química.
Mas, desde que a pandemia começou, fiquei muito sem disposição de cuidar do meu cabelão. Achei que era preguiça de finalizar, mas era de desembaraçar mesmo. Desde quando era criança, desembaraçar o cabelo sempre foi um momento tenso. Eu chorava, fugia, minha mãe inventava alguma história pra me convencer... Então, como saí pouco de casa em 2020, passei praticamente o ano inteiro de trança. Não dava ânimo de finalizar pra ficar em casa. Cacheadas/crespas entenderão.
Não teria nada para falar sobre isso se não fosse o fato de a minha cabeleireira, a Flávia, ter sugerido que eu doasse parte do meu cabelo cortado para a Rede Feminina de Combate ao Câncer aqui de São Carlos, para a confecção de perucas de mulheres que estão em tratamento. Eu acho muito legal quem doa, mas nunca nem passou pela minha cabeça que a doação do meu cabelo pudesse interessar a alguém. Achava que meu cabelo não servia pra isso, que ninguém iria querer. Mas, ao contrário, meu cabelo foi recebido com muito carinho e interesse pela instituição.
Eu sempre soube que todo esse problema que as pessoas têm com os crespos (os seus próprios e os dos outros) tinha raízes no racismo. Os tipos de comentário que você recebe deixam isso muito claro pra quem estiver disposto a ouvir. E eu lidei (e lido) com isso da mesma maneira confusa que qualquer branca cacheada lida.
Eu sofri bullying por causa do meu cabelo e não tenho autoestima de adamantium, não. E esse episódio da doação me fez perceber que a nossa autoestima é tão destruída desde cedo que, mesmo com todo o empoderamento batalhado, mesmo com toda a informação buscada, é muito difícil destruir por completo essas sementes ruins que são plantadas na gente. O amor que a gente tem pelo nosso cabelo é o aquele amor construído, um amor que teve que lidar com rejeição, apagamento, incompreensão, maus tratos... e que precisou de muita resistência e autoacolhimento para acontecer.
O que eu quero dizer é: cuidem bem de suas crianças cacheadas e crespas para que esse amor seja natural, de base. Digam que o cabelo delas é bonito, mostrem como é gostoso cuidar, aprendam a cuidar deles, comprem os produtos certos, os acessórios... sem imposição, sem ditadura de liso ou de cachos perfeitos. Só curtir o cabelo delas com carinho do jeito que ele é. Para que um dia a gente não tenha mais que ficar reforçando ou remendando autoestima quebrada e essa conversa nem faça mais sentido.